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A saúde atrás das grades: desafios e realidades do sistema carcerário brasileiro

  • Ana Clara Alves
  • 6 de jan.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 28 de jan.


Presidiário segura Declaração Universal dos Direitos Humanos através das grades de uma cela do Carandiru, clamando para que a força policial não invadisse o presídio, em 2 de outubro de 1992. (Fonte não identificada)
Presidiário segura Declaração Universal dos Direitos Humanos através das grades de uma cela do Carandiru, clamando para que a força policial não invadisse o presídio, em 2 de outubro de 1992. (Fonte não identificada)

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as pessoas privadas de liberdade têm os seus direitos assegurados pela Constituição Federal e pela Lei de Execução Penal nº 7.210 de 1984. O preso deve manter os seus direitos de cidadão como educação, saúde, assistência jurídica e trabalho para remição da pena. Mas será que um direito universal como o da saúde é realmente garantido fora do papel?


O projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, analisa os impactos sociais e econômicos da chamada guerra às drogas desde 2019. Essa estratégia política, que aposta no enfrentamento armado ao comércio de substâncias consideradas ilegais, consolidou-se no Brasil nas últimas décadas. Como consequência, o país enfrenta o encarceramento em massa de jovens negros e moradores de periferias, fruto de uma abordagem de segurança pública falha. De acordo com o CESeC, essa política não apenas agrava a violência e o sofrimento nas comunidades mais vulneráveis, mas também alimenta a corrupção policial e o fortalecimento de facções criminosas e milícias, que se espalham pelo território nacional.


A política de combate às drogas, apoiada por leis como a 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, cria o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e regulamenta as ações de prevenção e tratamento de usuários e dependentes de drogas, além de estabelecer crimes relacionados ao tráfico no Brasil. Isso eleva a taxa de encarceramento em massa, aumentando ainda mais o custo do sistema prisional, que já enfrenta condições precárias e desumanas.


Além dos custos econômicos e sociais da repressão às drogas, os impactos dessa política se refletem diretamente na superlotação das prisões, onde o acesso aos serviços básicos de saúde é insuficiente ou inexistente. Doenças infecciosas, transtornos psiquiátricos e outros problemas de saúde se tornam comuns nesses ambientes, evidenciando como o modelo atual de segurança pública perpetua ciclos de vulnerabilidade e desamparo. Assim, discutir a saúde no sistema carcerário é inseparável de analisar as escolhas políticas que levam ao encarceramento em massa, sobretudo aquelas relacionadas à criminalização das drogas.


Retrato da crise sanitária


A saúde é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal brasileira, mas a sua efetivação enfrenta barreiras significativas no sistema carcerário. Superlotado e negligenciado, o ambiente prisional é terreno fértil para a proliferação de doenças, agravando a situação de vulnerabilidade da população encarcerada. De acordo com os dados de 2024 do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, divulgado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, as prisões brasileiras têm um déficit de mais de 170 mil vagas. O cenário de superlotação contribui diretamente para a propagação de doenças como tuberculose, Aids e hepatites virais, que afetam desproporcionalmente a população carcerária em relação à população geral.


Maria Lima* é médica e atuou em unidades prisionais. Ela denuncia as condições de saúde alarmantes nas prisões: “Os presos estão completamente sob a tutela do Estado, mas isso não garante nenhum direito. As condições estruturais das unidades são para torturar e matar, com má alimentação, falta de medicamentos básicos e negligência constante”. A médica relata casos de presos que chegam às consultas em situações críticas, como tuberculose avançada ou crises de dor extrema não tratadas.


“Presos com problemas graves como pneumotórax muitas vezes são ignorados até que uma ordem judicial obrigue o tratamento. Isso é um retrato da negligência institucionalizada”, destaca Lima.


O papel da atenção básica


Embora a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade (PNAISP) tenha sido criada em 2014 para integrar o Sistema Único de Saúde (SUS) ao sistema penitenciário, sua implementação é desigual entre os estados.


“A atenção primária deveria ser a porta de entrada para a saúde prisional, mas, na prática, vemos muita burocracia e pouco suporte estrutural. Sem prevenção, a carga de doenças aumenta, sobrecarregando os recursos existentes”, explica Maria Lima.


Ela também relata que os profissionais que tentam prestar um atendimento digno aos detentos sofrem pressão dos agentes penitenciários: “Médicos são constantemente coagidos pela polícia penal a não atender os presos. Quem insiste em tratar os pacientes com dignidade é muitas vezes afastado ou ameaçado”.


Outro ponto levantado pela médica é a precariedade dos equipamentos: “Na UPA penitenciária em que trabalhei, os recursos eram limitadíssimos. Havia apenas dois leitos para emergências, o que é absolutamente insuficiente para atender uma população de mais de 30 mil presos”.


Histórias que humanizam


Para além dos números, as histórias individuais ilustram a gravidade do problema. Maria recorda o caso de um paciente que marcou sua experiência: “Tive um paciente com pneumotórax, uma condição potencialmente fatal. Ele havia procurado atendimento quatro vezes antes, sem que o problema fosse diagnosticado. Consegui tratá-lo apenas por ordem judicial. Essa negligência constante é inaceitável”.


Ela também afirma que presos com problemas psicológicos graves, como esquizofrenia, muitas vezes têm seus transtornos agravados pelo ambiente prisional: “Muitos não deveriam estar presos, mas internados em unidades psiquiátricas.”


Propostas para o futuro


Questionada sobre soluções para a realidade do sistema carcerário, a profissional de saúde defende que o atendimento à saúde prisional seja desmilitarizado. Além disso, a médica defende ainda que seja feita uma transferência desse cuidado para unidades de saúde fora do sistema penitenciário. 


“Apenas assim conseguiremos garantir um mínimo de dignidade e evitar que a saúde seja mais uma forma de tortura”, afirma. Ela também reforça que é necessário sensibilizar a sociedade para a realidade vivida nas prisões: “Essas pessoas vão voltar à sociedade. Se saem desumanizadas e adoecidas, as consequências serão sentidas por todos”.


A saúde no sistema carcerário reflete as desigualdades sociais e os desafios do Estado em garantir direitos básicos. Humanizar esse debate é essencial para construir soluções que respeitem a dignidade humana.


*Nome fictício.


Publicado por: Carolina de Vasconcelos

Faculdade de Comunicação Social | Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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